segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Nossas cidades são bombas socioecológicas


A urbanista da USP Ermínia Maricato não se surpreende com o fato de o transporte ter sido o estopim das manifestações que vêm ocorrendo nas cidades brasileiras. Nesta entrevista, ela fala sobre o caos urbano e quase tudo que o compõe, como mobilidade, mercado imobiliário, interesses das corporações, condições de vida e saúde. Por Rose Spina, da revista 'Teoria e Debate'

Rose Spina 

São Paulo - Não foi por falta de aviso! A urbanista Ermínia Maricato há alguns anos chama a atenção para os impasses na política urbana brasileira e alerta para o fato de nossas cidades serem verdadeiras bombas-relógio. Professora colaboradora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, da qual foi titular por mais de 35 anos, e professora visitante da Unicamp, Ermínia foi secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003-2005) e de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo (1989-2002), no governo Luíza Erundina. A autora de O Impasse da Política Urbana no Brasil (Editora Vozes), que integra o Conselho da Cidade de São Paulo, diante de tantos obstáculos para uma verdadeira reforma urbana, não quer mais saber de cargos, quer ser movimento social, ir para a rua.

Alguma surpresa com o fato de as manifestações ocorridas em junho terem como estopim a situação do transporte coletivo?

Ermínia Maricato: Nenhuma. Eu estou surpresa de ver tanta gente surpresa com essa explosão, que é principalmente de classe média, mas não só. E sobre ter o transporte como o estopim. Há alguns anos falamos que o transporte é uma das principais questões. Também não estou surpresa de a direita estar na rua. Ao contrário, estava perplexa de ver a organização da direita nos veículos de comunicação, em eventos e fóruns que tenho frequentado e até em conselhos, como o de Desenvolvimento Urbano, por exemplo. Estou muito impressionada com o que está acontecendo com o chamado desenvolvimento urbano. Trata-se de uma involução, principalmente em função do mercado imobiliário.

Construímos, nos termos do capitalismo da periferia, cidades que são bombas socioecológicas devido à incrível desigualdade e segregação – nos últimos anos, com o boom imobiliário, a prioridade dada aos automóveis, às obras viárias, e ainda elevamos o grau dessa febre, com os megaeventos, a Copa. Realmente, as cidades estão entregues ao caos, a interesses privados, e as condições de vida da maioria estão piorando muito.

Por que você trata desenvolvimento como involução?

Ermínia: Existe um projeto para o crescimento do país. Nós tivemos as décadas perdidas e voltamos a investir em políticas públicas recentemente, e em transporte urbano não voltamos a investir. Existe um investimento que acompanha a Copa, mas, política de transporte urbano em nível nacional, nós não temos desde a década de 1980. Houve recuo nos investimentos em políticas públicas, habitação, saneamento e transportes, que estruturam as cidades. Em 2003, houve um retorno do investimento em saneamento, em torno de R$ 3 bilhões. Depois, em 2005, um retorno do investimento em habitação e saneamento. Em 2007, obras de infraestrutura urbana, com o PAC, e, em 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, acontece do jeito que o diabo gosta. A apropriação principalmente da renda imobiliária e fundiária se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro de preço do metro quadrado com despejos violentos, política que não esperávamos que fosse voltar tão rapidamente.

São Paulo teve episódios emblemáticos no ano passado.

Ermínia: Sim, mas há muitos incêndios e despejos em favelas. E uma das principais forças ligadas ao crescimento econômico e vinculada a essa tragédia é a mobilidade urbana. O transporte coletivo está em ruínas, não foi recuperado nos últimos trinta anos. E o automóvel entra fortemente no cenário com todas as consequências que estamos vendo.

O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada priorizando o que decidem. Isso é incrível porque há cidades onde oferecem ao prefeito uma obra e não precisa ter Plano Diretor, nada... a obra sai e pronto! Se a obra é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz.

Em São Paulo, a ampliação da Marginal Tietê é uma obra que contraria completamente a visão dos urbanistas sobre o que é prioritário. Do ponto de vista ambiental, então, é um desastre impermeabilizar ainda mais as margens do rio. Uma obra que custou R$ 1,7 bilhão. E pasmem! O ex-prefeito Gilberto Kassab deixou licitado um túnel de R$ 3 bilhões, que nem servirá para ônibus. Faz parte da operação urbana Águas Espraiadas. Felizmente pude falar sobre isso no Conselho da Cidade.

Vivemos uma situação de desmando nas cidades brasileiras. A política urbana realmente sumiu do cenário nacional. Política urbana não é um monte de obras.

O Movimento pela Reforma Urbana está organizado?

Ermínia: Está recuado e muito focado em uma demanda pontual: casa própria e financiamento para o movimento. Não há discussão de uma política ampliada.

Nossos anos dourados foram com a política do modo petista de governar, que não sei por que foi esquecido até pelos municípios. Ao olhar para a cidade ilegal, constatamos que os trabalhadores a construíram assim porque ganhavam pouco e esse deveria ser nosso lugar prioritário de ação. Então construímos uma política para recuperar a cidade ilegal.

No que consistiu essa política?

Ermínia: Prioridade à área construída ilegal, desurbanizada, esquecida pelos governos e planos anteriores. Eram bairros inteiros, periféricos, onde não existia lei. Favelas, áreas degradadas, e era preciso evitar riscos, como enchentes, desmoronamentos, epidemias, a condição insalubre e melhorar os padrões de esgoto, drenagem, coleta de lixo...

Pavimentação e equipamento de educação foram uma das coisas mais revolucionárias que fizemos na gestão Marta Suplicy. Construímos teatro, cinema, natação, dança, arte, esporte. Nosso trabalho ficou conhecido no mundo, por causa da arquitetura de habitações, pelo know how de urbanização de favelas.

Além de encontrar essa cidade ilegal e dar um outro padrão a ela, fomos em busca de outras formas de arquitetura, habitação e legislação. Nós temos um arcabouço institucional e legal, que o mundo não entende por que reclamamos.

Quais leis compõem esse aparato legal?

Ermínia: Constituição Federal, Estatuto da Cidade, famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades, Conselho das Cidades, lei federal de consórcios públicos, Plano Nacional de Habitação, lei federal de saneamento, lei de resíduos sólidos e a última é de mobilidade.

Então, onde está o problema?

Ermínia: Temos grande quantidade de conselhos, algo em torno de 20 mil. Uma enorme variedade de conferências, municipal, estadual, federal, criança, adolescente, idoso, educação, cultura... Está todo mundo ocupado no institucional. O PT está absolutamente incluído no institucional. O resultado da convocação do partido que não cobriu a Avenida Paulista de vermelho deve soar como uma luz. Eu mesma fiquei impressionada. Cadê a militância? Ela está ocupada. E a militância que foi às ruas, que não está no espaço institucional, é despolitizada, o que também é nossa responsabilidade. “Nunca fomos tão participativos”, como digo em meu livro O Impasse da Política Urbana no Brasil. Há novas instituições e um novo arcabouço legal. Tivemos muitas conquistas sociais: aumento do salário mínimo, bolsa família... Mas isso se esgotou.

E onde foi parar a reforma urbana? Não havia uma proposta?

Ermínia: Em 1979 e 1980 o país cresceu muito, depois houve queda e uns voozinhos de galinha. Com o governo Lula o país cresce. Mas esse crescimento com base na indústria automobilística deveria ter sido mais bem avaliado, pois as cidades pagariam um preço muito alto. E o pior: para criar pouco mais de 20 mil empregos durante um certo tempo, uma vez que a lógica desse tipo de indústria é desempregar.

A partir de 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento e em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Com o primeiro decola a atividade de construção pesada e com o segundo a construção residencial.

Se atentarmos para a relação do PIB brasileiro e o da construção, observamos que, em 2008, o primeiro foi de 5,2%, enquanto o segundo foi de 7,9%. Em 2010, o PIB brasileiro vai a 7,5% e o da construção a 11,6%.

O PAC se destina a financiar a infraestrutura econômica (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e toda a infraestrutura de geração e distribuição de energia) e a infraestrutura social (água, esgoto, drenagem, destino do lixo, recursos hídricos, pavimentação). Finalmente o Estado reconhecia a cidade ilegal e o passivo urbano, buscando requalificar e regularizar áreas ocupadas ilegalmente. Com o Minha Casa, Minha Vida é diferente. Retoma-se a visão empresarial da política habitacional, ou seja, de construção de novas casas, apenas, sem levar em consideração o espaço urbano em seu conjunto, e muito menos a cidade já comprometida pela baixa qualidade.

Com a finalidade explícita de enfrentar a crise econômica de 2008, o programa apresenta pela primeira vez uma política habitacional com subsídios do governo federal, e para tanto foi bem-sucedido.

A taxa de desemprego na construção diminuiu muito comparada ao desemprego em outras atividades. Isso não é pouco importante, a questão está nas empresas de construção e incorporação. Em 2007, dezessete delas abriram capital na bolsa de valores, compraram um estoque de terras e estavam justamente aguardando fundos para a construção de moradias. O programa responde a essa necessidade e as empresas passaram imediatamente a construir febrilmente.

O financiamento habitacional cresceu 65% de 2009 a 2010, e no ano seguinte, 42%. O montante de subsídio concedido de 2008 a 2009 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. Quando as empresas entram o salto é vertiginoso. Esse subsídio foi parar no preço da terra, porque na verdade no déficit de moradia da baixa renda, até três salários, não se mexeu ainda.

Essa também é sua crítica ao programa?

Ermínia: É. O programa nesse período incluiu a classe média, de cinco a dez salários mínimos. Mas a reprodução da desigualdade e da segregação se deu pela forma agressiva com que os capitais imobiliários reassumiram o mercado de terras expulsando, com despejos violentos ou incêndios nunca bem explicados favelas ou ocupações ilegais situadas em áreas com potencial de valorização.

A elevação de preço do metro quadrado no Rio foi de quase 185% e em São Paulo de 151%. Há pessoas que fazem esse acompanhamento, como o pessoal do blog Fogo no Barraco, que mapeia os incêndios em favelas e a valorização imobiliária. Há também o Observatório de Remoções de São Paulo, sobre despejos, criado por nossos pesquisadores.

A favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes, está localizada na linha de uma operação urbana prevista da Lapa ao Brás, feita por um escritório americano. Eles tomaram conta!

E a região da Cracolândia?

Ermínia: Lá ficou claro que se tratava de um programa do Kassab com o Serra, Nova Luz, que o Fernando Haddad suspendeu. É outro ponto dessa linha Lapa-Brás.

Há também investimento pesado na Barra Funda, Campos Elísios. A máquina do crescimento utiliza capital imobiliário, empresa de construção pesada, interesses de determinados setores... As empreiteiras tomaram conta da cidade. Elas, que também são financiadoras de campanha, já estavam presentes na coleta de lixo, na energia, na mineração, estão passando para o setor imobiliário.

O que você diz dos efeitos do estresse urbano nas populações de nossas cidades?

Ermínia: Vamos aos dados: 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. É uma pesquisa da USP.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentam transtornos mentais, nos doze meses anteriores à pesquisa. Ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso. Isso é uma bomba.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico. Há filmes que mostram bem essa realidade, por exemplo, Os Doze Trabalhos, de Ricardo Elias.

Qual é o tempo médio das viagens?

Ermínia: O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2:42 horas. Para um terço da população esse tempo é de mais de 3 horas. Um quinto leva mais de 4 horas, ou seja, passa uma boa parte da vida nos transportes, seja ele um carro de luxo, seja em um ônibus ou trem superlotado, o que é mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana.

Em São Paulo, em 2011, morreram em acidentes de trânsito 1.365 pessoas, 45,2% (617) delas atropeladas, o que revela a insegurança de pedestres, e 512 motociclistas. Ou seja, as vítimas são os pedestres e motociclistas, mas quem causa a morte são os carros, responsáveis por 83% das ocorrências.

Contando ninguém acredita, mas a velocidade média dos automóveis em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em junho de 2012, foi de 7,6 km/h – quase a mesma de uma caminhada a pé. Durante a manhã a velocidade é de 20,6 km/h – de uma bicicleta. É um absurdo!

Os congestionamentos na capital paulista, onde circulam 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros de vias. Todas as cidades de porte médio e grande estão apresentando congestionamentos devido à enorme quantidade de veículos que entram nelas a cada dia. O consumo é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns estaduais para a compra de automóveis. Em 2001, em doze metrópoles brasileiras, somavam 11,5 milhões; em 2011, 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Em diversas metrópoles, o de automóveis dobrou nesse período.

Em todos os lugares onde vou a grita é geral. Estive no Sindicato dos Engenheiros, em Recife, e todo mundo reclamando do tempo que gastava no trânsito. Se a classe média alta está com esse discurso, imagine como estão os trabalhadores das periferias.

E os dados de poluição também são importantes. Segundo o professor da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva, estima-se que para cada dez microgramas de poluição retirado do ar há um aumento de oito meses na expectativa de vida. Aproximadamente 12% das internações respiratórias em São Paulo são atribuídas à poluição do ar, um em cada dez infartos é resultado da associação entre tráfego e poluição – 76% dela gerada pelos automóveis. Os atuais níveis de poluição do ar respondem por 4 mil mortes prematuras ao ano na cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de um tema de saúde pública.

Como você identifica a atuação dos três poderes com relação à política urbana?

Ermínia: Eles ignoraram. Não é competência do governo federal, por exemplo, tratar do uso e ocupação do solo. Tudo fica a cargo dos municípios: Plano Diretor, Lei de Uso do Solo, transporte urbano, saneamento urbano. Mas o governo federal não colocou transporte urbano na agenda nem no período em que estivemos lá. Essa foi uma das lutas que tentamos encampar. A mobilidade é tão importante quanto a saúde.

Até para moradia se dá um jeito. A população se instala em algum lugar, ocupa área de mananciais, Serra do Mar, beira de córrego, mas, quando está morrendo, não tem jeito. Então saúde e transporte são urgentes.

E qual é a solução?

Ermínia: A reforma urbana é uma agenda. É preciso garantir a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade, o controle público sobre a propriedade e o uso da terra e dos imóveis – conforme competência legal constitucional –, e tornar os transportes coletivos, e o não motorizado, como prioridade da matriz de mobilidade urbana.

As nossas empresas de transporte são um grande problema. Fernando Haddad pegou um “rabo de foguete”, mas teve apoio do Conselho da Cidade, para abrir a caixa-preta dos transportes.

A presidenta Dilma anunciou o Plano Nacional de Mobilidade. Temos de ir para a rua, porque eu, por exemplo, não quero mais cargo. Quero ser movimento social, sociedade civil, porque não adianta ir para o governo se a sociedade não empurra. Acabará fazendo o jogo dos caras...

Você se refere aos governos de coalizão?

Ermínia: Como é que conseguíamos fazer tanta coisa sem coalizão, na época do modo petista de governar nos municípios? O transporte, hoje, atinge todo mundo, porque quem tem carro também está parado.

As pessoas sentem isso, que a cidade está entregue. Você não vê em lado nenhum que tem uma força do bem conduzindo para algum lado. Isso faz uma sociedade entrar em caos... Qual é a maior causa dessa crise hoje? É o avanço imobiliário que está totalmente descontrolado e avançando sobre a periferia também, empurrando os pobres. A cidade está se espalhando.

Falamos sobre o arcabouço legal, mas como é o desempenho do Judiciário no cumprimento do que está estabelecido?

Ermínia: O Judiciário é extremamente conservador. Tenho quarenta anos de ação em política urbana e o número de sentenças que já vi serem dadas contra a lei impressiona. Se é que podemos dizer que um juiz dá uma sentença ilegal – é surpreendente. Uma hipótese que já levantei é que o Judiciário não conhece a legislação urbanística. Dei aula para o Ministério Público de vários estados. Sempre tem pessoas bem avançadas. Por exemplo, a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, pelo menos durante um certo período, era mais avançada, e setores do Ministério Público de São Paulo ligados ao meio ambiente e à questão urbana, também.

Mas o Brasil é um país continental, como se dá isso por aí afora?

Ermínia: Minhas pesquisas apontam um país em que a fraude registrária é regra. No mais das vezes em propriedades contíguas a limitação não confere. As propriedades registradas no Pará dão cinco vezes o território do estado. O Incra tem documentos muito bons, inclusive de governos da década de 1990, sobre fraudes em desapropriações. São comuns as fraudes ligadas à questão fundiária, o que se estende à cidade. Há shopping centers em área da União, loteamentos, como Alphaville, que tem parte na área da União. Em São Paulo o bairro São Miguel Paulista ocupou áreas indígenas.

Há um discurso dos ruralistas aparentemente rigoroso por parte de suas lideranças, principalmente a deputada Kátia Abreu, mas uma condição do latifúndio é de invasão de terra. O principal objetivo na aprovação do Código Florestal é a regularização de terras, porque o registro de terras no país é uma barafunda. Ao mesmo tempo, o Judiciário e a mídia acusam o MST de ocupar, derrubar árvores. A Globo mostrou ao Brasil inteiro o MST derrubando árvores, em uma propriedade supostamente de uma empresa de laranjas, só que era uma propriedade grilada, questionada pelo Ministério Público Federal. É propriedade da União.

E qual é a relação reforma agrária e reforma urbana?

Ermínia: É impossível separar as duas coisas porque, atualmente, o que se vê em vários países é que para segurar a expansão urbana se faz uma agricultura urbana, que tem um papel urbanístico e ambiental muito importante na absorção das águas de chuva e não deixa a cidade inundar. São Paulo, segundo o ambientalista Hans Schreier, que está no Canadá, é a maior área impermeabilizada do mundo. O Rio Tietê acabou também tendo a margem mais impermeabilizada por uma obra viária recente. Só a permeabilização do solo é que pode melhorar, porque fazer obra, tipo piscinão, contenções, tem limite. A manutenção é ruim.

Além do papel ambiental, a agricultura urbana evita que o alimento viaje. João Pedro Stédile disse outro dia que em Manaus se come o tomate de Mogi das Cruzes. Isso é um crime. Por que isso se podemos ter o alimento próximo da cidade, principalmente o perecível, na merenda escolar, fresco e sem veneno? O Brasil se tornou o grande país consumidor de agrotóxico no mundo.

Temos florestas no sul do município de São Paulo, temos mata ainda. Uma das propostas é conservar e fazer uma agricultura orgânica nessa região. Os sonhos a gente nunca abandona.

E o comportamento do Legislativo quanto a todos esses temas elencados aqui?

Ermínia: O Legislativo é um caso seriíssimo. Há o capitalismo global de um lado e o clientelismo do outro. Quando eu estava no Ministério das Cidades, aparecia muito deputado pedindo asfalto – em uma quadra, rua, cidade –, era a maior reivindicação de emenda. Fizemos até uma cartilha para tentar politizar os deputados e explicar pelo menos que era preciso instalar a rede de água e esgoto antes de fazer o asfalto.

Sem reforma política não dá. Agora temos de ir para a rua. Criamos um Ministério das Cidades pra quê? Mais um espaço para ser moeda de troca? A esse arcabouço legal e institucional precisa corresponder uma correlação de forças favorável, senão é inútil. O Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro e nós não conseguimos aplicá-lo.

Todos esses serviços urbanos estão no âmbito dos municípios. Mas em muitos casos a solução de grandes problemas extrapola essa esfera. Não faltam instrumentos para organizar esse tipo de demanda?

Ermínia: Sim, muitas dessas questões são metropolitanas. A única ressalva que eu faria em lei federal é que deveríamos ter um tratamento unificado sobre o que é metrópole e como administrá-la. A Constituição de 1988 remeteu aos estados a questão metropolitana. Então cada um resolveu ou deixou de resolver de um jeito. Há estados que consideram cidades médias metrópoles e estados que não consideram a cidade principal metrópole. Manaus não era região metropolitana e Blumenau era. Não dá para resolver, por exemplo, questões de esgoto, água, transporte, moradia.

E os impactos dos megaeventos nas cidades?

Ermínia: Os megaeventos são como o aumento da febre. Porque junto com megaevento vem um tsunami de capitais para o país, engordam e vão embora. Esses capitais vêm com certas regras, mas nem todas são interessantes para o país, que acaba ficando com elefantes brancos. É o que está acontecendo na África do Sul, na Grécia, na China, onde ocorreram eventos esportivos.

No Brasil, o estádio de Natal por exemplo, já não lotava. Só que o colocaram abaixo e estão construindo outro com o dobro do tamanho. O governo não está investindo, mas toda a infraestrutura de transporte é em função das Copas. Servirá para a população ou só para quem vai do aeroporto para os hotéis?

Mas a situação não é diferente em cada estado?

Ermínia: Sim, é diferente, mas há abuso em todos os estados. Onde há maior arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com que a população pobre saia do centro e vá para o fim do mundo. Há casas do Minha Casa, Minha Vida só para remoção de risco e em consequência da Copa. Tem áreas das quais as pessoas foram retiradas que estão vazias. Pobre desvaloriza.

Você tem esperança de que é possível mudar?

Ermínia: A esperança sempre tem de estar nas gerações que estão vindo, porque para quem tem a minha idade o tempo é limitado. A nossa cabeça é um patrimônio. Somos educados, aprendemos, vivemos experiências e adquirimos certa sabedoria. Eu sempre achei que a educação para os direitos humanos é fundamental e deve começar nas crianças, e agora acho isso mais importante do que nunca.

Há alguns anos, quando eu ia para a periferia, pensava que perderíamos uma geração, porque ninguém estava dando suporte para aquela criançada. Mas estou muito mais otimista depois que as manifestações explodiram. Porque eu acho que a direita neste país, apesar de muito agressiva, não tem condições de dar um golpe. A esquerda, sim, está em condições de se reorganizar e voltar a trabalhar de forma menos institucional e mais preocupada com o social.

Você tem ido para as periferias?

Ermínia: No momento, não, mas acho que tem uma vida na periferia mais interessante do que antes. Mano Brown e Emicida estão entre as lideranças mais importantes do país. Pela cultura, eles discutem tudo, especulação imobiliária e também a questão urbana. Essa efervescência me dá esperança. É afirmação de identidade, reivindicação de melhores condições de vida. É uma tentativa de enfrentar esse abismo que é o tráfico na periferia. Um cara como Mano Brown, que não se vende para a Globo, para mim é um herói.

Fonte: Carta Maior (aqui)

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